A meio caminho entre a terra e o Bugio, onde o mar encapelado engole o Tejo e se desfaz em espuma branca, havia casas e havia gente. Havia barcos e pescadores, vapores e veraneantes. Era terra de marítimos, a outra banda de quem não podia ir mais longe, "o Algarve dos remediados", a Cova do Vapor, a Lisboa Praia de há meio século atrás.
Empurrada bela braveza do mar, a povoação foi recuando, ano após ano, para as matas que a encurralavam nas franjas do areal. Durante décadas, até ao 25 de Abril, a luta foftêm quartel. "O mar batia e a gente fugia. Trazíamos as casas para trás, mas ele não parava", conta um velho pescador. As primeiras pedras para os esporões que domaram as vagas e estabilizaram a aldeia no local onde agora se encontra foram trazidas pelo exército, pouco depois de 1974. "Foi o MFA [Movimento das Forças Armadas] quem as trouxe para cá", diz Guilherme Pais, um reformado da Lisnave e vice-presidente da Associação de Moradores.
A Cova do Vapor é hoje um vestígio de outros tempos, uma espécie de Portugal dos Pequenitos, uma aldeia como que em miniatura, um emaranhado de casas e casinhas, muitas delas ainda de madeira, encavalitadas umas nas outras, condenadas pelo mar a disputar o magro espaço livre.
Destroçados pelo oceano que lhes devorava o chão, aos moradores só restava uma escapatória: a densa mancha verde que rodeava a antiga Fábrica de Explosivos da Trataria, a mata cujospropríeíarios, amigos e espanhóis, iam cedendo metro a metro, mais uma nesga de cada vez que as ondas faziam novas destruições.
"O meu sogro era dono do Bar Atlântico e teve de mudar a casa sete vezes", lembra um dos residentes. "Quando o mar começou a comer isto, aqui há uns cinquenta anos, as barracas de madeira que estavam a um quilómetro do Bugio tiveram de ser arrastadas por juntas de bois. O Manei da Fruta é que mudava as casas.
Umas desmontavam-se, outras vinham inteiras", lembra Hernâni Pereira, o presidente da Associação de Moradores.
"Quando as ondas vinham por aí adentro, o engenheiro Roger, que era genro do D. José da fábrica, punha-se em cima de uma duna e gritava para a gente: Agora podem avançar [com as casas] até acolá. Era sempre assim...", acrescenta o velho Hernâni — um reformado que fez muitas épocas como nadador-salvador e durante 34 anos foi soldador na Carris, em Lisboa.
Mas se os invernos eram de desespero e medo, os Verões continuavam a atrair mais e mais banhistas. E se o espaço já faltava para os residentes permanentes, a pressão dos que se queriam instalar, para finsde-semana e férias, fazia com que a povoação se fosse tornando um labirinto de ruelas, becos apertados e casas cada vez mais pequenas.
O tempo da paródia e das patuscadas "Isto era tudo pessoal da banda de lá. Eu morava no bairro da Liberdade [em Campolide] e vinha para aqui acampar há muitos anos. Vinha a família, vinham os amigos, vinha tudo atrás de uma caldeirada ou de uma bacalhauzada." Era o "tempo da paródia e das patuscadas", diz José Talamba, 73 anos, que se instalou definitivamente na Cova do Vapor quando se reformou e que ainda conheceu o "Flecha" — "o vapor que trazia a malta até lá para 1960, até o mar dar cabo do cais".
Como muitos dos seus vizinhos, o pedreiro Talamba começou a fazer a casa em 1975 e serviu-se abundantemente das sobras da sua profissão.
Os azulejos que ia arranjando serviram-lhe para revestir as paredes exteriores, não olhando a cores, formas, ou tamanhos.
"Depois do 25 de Abril houve aqui um certo desordenamento, mas também o houve em todo o país e ainda bem", explica Guilherme Pais, admitindo a existência de "abusos" nesse período inesquecível. "Em certa altura até já estavam a construir uma pensão na mata. Teve de cá vir o Copcon [força militar dirigida por Otelo Saraiva de Carvalho no Verão de 1975] deitar tudo abaixo." O resultado do entusiasmo desse tempo, da falta de solo para construir e da sistemática reutilização de toda a espécie de materiais disponíveis conferiu à Cova do Vapor um ambiente social e urbano único. Fortemente influenciada pela proveniência citadina e operária de grande parte dos moradores — em particular dos que aí fizeram as suas modestas residências de veraneio e se juntaram aos pescadores originais —, a paisagem local ganhou um cunho com algo de surreal e muito de pitoresco.
Na orla marítima, a meia dúzia de metros dos esporões e coladas à sinuosa e estreita via marginal, ainda dominam as casas de madeira e cores fortes construídas nos anos 40 e 50, quando o mar começou a galgar a terra. Pela exígua baixa que se estende até à vedação da vasta mata — aparentemente condenada a ser urbanizada pêlos actuais proprietários — enxameiam as construções mais ou menos precárias, sempre agarradas umas às outras, expoentes de engenho e desenrascanço, às vezes sem se perceber onde é que começam umas e acabam as outras.
Duas ou três ruas de terra batida, aquelas onde estão as poucas lojas da terra, deixam passar carros. Mas o dédalo dos caminhos serpenteia por todo a parte, com largura apenas para os assadores omnipresentes, para os canteiros da salsa e dos coentros, para um tanque de roupa ou um duche apertado.
Às vezes ainda com espaço para umas couves, umas flores, umas árvores de fruto, armários, estendais, e outras inventivas extensões de casas que mais parecem de bonecas.
E por todo o lado, as marcas peculiares da vizinhança marítima, das conchas e dos seixos, das artes dos serralheiros e outros mestres, gente criativa que ali moldava sonhos à medida das suas posses.
Cuidada e delicada, feita de afectos que não marcam os bairros degradados das periferias, a Cova do Vapor está longe de ser um bairro de lata ou uma aldeia igual às outras. E uma povoação singular, um caso de estudo, um museu de vivências antigas.
A Cova do Vapor é um lugar onde tudo é diferente, sem escola, centro de saúde ou vestígio de serviço público, um lugar contraditório, uma relíquia de excepção.
Futuro incerto A Cova do Vapor ocupa hoje uma área de futuro indeterminado. Questões de propriedade dos solos onde as casas foram erguidas e lógicas de protecção ambiental que colidem com a história da povoação e com os interesses dos moradores estão a constituir-se como um motivo de preocupação de quem lá vive. A situação, porém, está ainda por esclarecer. Depois de algumas notícias recentes apontarem para a demolição obrigatória de uma parte da aldeia, o Instituto da Conservação da Natureza disse há dias ao PÚBLICO que o Plano de Ordenamento da Orla Costeira da Zona Sintra-Sado se encontra ainda em elaboração, pelo que são prematuras todas as conjecturas sobre aquilo que ele venha a determinar para a área que abrange.